Localizada nas margens do Mato Grosso, na divisa com a Bolívia, a comunidade Bocaina abriga diferentes biomas, identidades e histórias
No centro da América do Sul, onde Pantanal, Cerrado e Amazônia se encontram, existem pessoas que misturam a língua portuguesa, espanhola e indígena enquanto manejam seu gado à solta e cuidam de seus quintais com plantações de feijão, milho, frutas e outras variedades de alimentos.
Esse lugar, que está na divisa do Brasil com a Bolívia, é a comunidade Bocaina, pertencente ao município de Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital do estado do Mato Grosso. Histórias de vida e resistência se cruzam nesta região que é marcada por desafios, como os conflitos fundiários e a violência contra as populações tradicionais, mas que seguem embaladas pelos ritmos de respeito ao território e da luta por direitos.
Formada em sua maior parte por chiquitanos, agricultores e agricultoras familiares em busca de reconhecimento da sua identidade indígena, o pequeno território de Bocaina está em uma região com grande diversidade de comunidades quilombolas e outros segmentos de povos tradicionais. Os diversos modos de vida presentes na região fazem dela um retrato da mistura latina unida às relações de respeito com o território e o que ele pode oferecer.
“A gente faz o possível para conservar o solo, o meio ambiente, pra que a gente possa produzir cada alimento que vem pra nossa mesa”, conta Carlos Ney Baca Javanum Chiquitano, Seu Carlos.
Seu Carlos é liderança comunitária da Associação da Bocaina, beneficiária do Fundo para a Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), do ISPN, com financiamento do Fundo Amazônia. Por meio do projeto “Quintais Produtivos agroecológicos que incentivam a agricultura familiar”, desenvolvido com o apoio do Centro de Tecnologia Alternativa (CTA) entre os anos de 2019 e 2022, a comunidade Bocaina diversificou a produção de alimentos, uniu mais a população local e aumentou a geração de renda com a venda do excedente produtivo.
Ao todo, 15 famílias foram beneficiadas pela iniciativa e, juntas, comercializaram cerca de R$ 30 mil em alimentos só em 2021, maior parte via o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O balanço de 2022, que ainda está sendo fechado, tem previsão de crescer 45%. Além disso, o projeto é um aliado no envolvimento da juventude local em todos os assuntos referentes à comunidade como cultura, política e agricultura.
“Os jovens são nossos espelhos, a comunidade tem que crescer também com a juventude, queremos inspirá-los com nosso trabalho. Ensinamos que é preciso valorizar cada planta e a nossa terra”, complementa Seu Carlos.
Tiago, Eduardo e Matheus Charupa Poquiviqui, de 17, 12 e 1 anos respectivamente, são filhos de Wilson Nunes Poquiviqui, conhecido como Chiquinho, e Luzia Izabel Pachuri Charupa. Os mais velhos já se envolvem com os movimentos comunitários de Bocaina.
Tiago, por exemplo, é o tecladista oficial das festividades tradicionais da comunidade e, junto com o irmão, ajuda os pais com as plantações e o aprendizado agroecológico de que comida boa é aquela produzida com as mãos que cuidam da terra e da saúde das pessoas. No sítio, encontramos plantações de milho, abóbora, mamão, jiló, laranja, limão, banana, acerola, jabuticaba, romã e ainda é possível observar uma diversidade colorida de pássaros voando por ali.
Tiago, Eduardo e Matheus Charupa Poquiviqui, de 17, 12 e 1 anos respectivamente, são filhos de Wilson Nunes Poquiviqui, conhecido como Chiquinho, e Luzia Izabel Pachuri Charupa. Os mais velhos já se envolvem com os movimentos comunitários de Bocaina.
Tiago, por exemplo, é o tecladista oficial das festividades tradicionais da comunidade e, junto com o irmão, ajuda os pais com as plantações e o aprendizado agroecológico de que comida boa é aquela produzida com as mãos que cuidam da terra e da saúde das pessoas. No sítio, encontramos plantações de milho, abóbora, mamão, jiló, laranja, limão, banana, acerola, jabuticaba, romã e ainda é possível observar uma diversidade colorida de pássaros voando por ali.
“Bom é consumir o que vem aqui do nosso quintal, comer o que a gente produz sem veneno. A terra aqui é boa, e nós cuidamos dela, a natureza é muito boa com a gente. Nós queremos comer o que plantamos, beber das frutas daqui, da nossa agricultura familiar”, comenta o pai dos meninos.
Seu Chiquinho anda feliz, ele vê esperança de melhorar sua vida e da família por meio da produção de sua terra. Antes, a base do sustento familiar vinha apenas das diárias como ajudante nas fazendas da região, agora ele enxerga chances concretas de emancipação e de construir uma nova vida.
Outra personagem dessa comunidade diversa, e também beneficiária do projeto, é a agricultora Doralice Miranda Pachuri. Em conversa com o ISPN, ela compartilha que o amor pela terra e pela produção une e engaja a família na defesa da natureza. É também o que traz alegria para o cotidiano.
“Tudo isso aqui é riqueza, as frutas, os milhos, a terra. Os alimentos que a gente consome aqui são orgânicos, são saudáveis. Eu adoro tudo o que essa terra me dá, inclusive, a forma como vivemos”, comenta.
Após o projeto, Doralice passou a participar de discussões sobre protagonismo feminino, ao entender a importância de incentivar outras mulheres a participarem politicamente da comunidade, pelo desenvolvimento e bem-estar da região.
Outra referência feminina da comunidade é Iraci Balta Paim. Criadora de galinhas caipiras, a agricultora familiar mostra que o cultivo e manejo de animais por ali é forte e contribui para o sustento, a geração de renda e a diversidade alimentar da região.
Próximo à casa de Doralice e sua família, vive Juvenil Ribeiro Costa, conhecido como Seu Thoco, um sábio descendente dos Chiquitano da Bolívia e conhecido na comunidade pelas suas irreverentes vassouras produzidas com o material vindo de suas plantações de sorgo-vassoura (Sorghum bicolor).
Ele é quem produz tais utensílios, além de plantar os alimentos que sustentam sua família. Para construir as vassouras, que são famosas na região, o chiquitano se vale de uma tecnologia caseira que ele mesmo inventou. É uma máquina manual que o ajuda a tirar as sementes das plantas. Na sequência, ele costura e finaliza.
“Em dois dias eu inventei essa máquina. Antes, eu levava cerca de meio dia pra tirar as sementes, agora, é questão de minutos”, explica. Seu Thoco vende cerca de R$ 20.000,00 em vassouras por ano.
Veja a máquina do artesão e depoimentos de agricultores chiquitanos da comunidade no vídeo abaixo:
A criatividade e sabedoria do indígena se misturam às plantações de milho, banana, café e outras variedades de alimentos. O agricultor comercializa o excedente de sua produção assim como as outras famílias com o apoio do CTA dentro das atividades do projeto. Por conta disso, a renda na comunidade passou a crescer e circular cada vez mais, o que possibilitou a formação de uma rede solidária e cultural de celebrações. É comum na comunidade acontecer cerimônias e festividades coletivas, quando cada família leva um prato e há música, confraternizações e fortalecimento conjunto, de identidades e histórias.
Um desses momentos é o Curussé, festividade tradicional e religiosa Chiquitana que acontece durante o carnaval. Nesse período, os mais velhos desfilam pelas ruas com instrumentos de sopro e percussão, acompanhados de danças, cantos e brincadeiras.
Ao passar de casa em casa, o Currusué arrasta as pessoas que acompanham a manifestação até formarem uma massa alegre e viva. A culinária também está presente e é formada pela produção agroecológica das próprias famílias. O que Doralice, Seu Thoco, Seu Carlos, Chiquinho e Luzia plantam complementam os pratos típicos do festejo, como o bolinho de arroz, a sopa de cabeça de porco e milho e uma bebida típica chamada “chicha”, fermentada com milho.
Essa exaltação cultural dos Chiquitano se mistura à cultura brasileira e da América Latina, o que ajuda a entender que esse local é um coletivo de identidades, onde cada uma se entrelaça e mostram que tradições culturais, produção sustentável e histórias do campo precisam ser valorizadas e incentivadas. Bocaina e os Chiquitanos apresentam um Brasil e uma América Latina agroecológicos, culturais e de resistência, na qual a agricultura familiar e a sabedoria dos povos podem presentear ao futuro.
PPP-ECOS e a resistência de Bocaina
Apesar das diversas riquezas presentes em Bocaina – de saberes, alimentos, culturas e histórias – a comunidade está localizada em uma região fortemente pressionada pelo agronegócio cada vez mais desordenado. As tradições culturais e a produção sustentável são ameaçadas por esse movimento exploratório. Os Chiquitano estão em estado de organização e luta pela terra e tudo que ela representa, afinal, sem território não há memória e nem vida para esses povos.
Diante disso, apoios como o do PPP-ECOS tornam-se fundamentais para proteção da comunidade ao contribuírem com a organização e o fortalecimento político comunitário, dando mais subsídios para a luta e resistência.
“O projeto foi fundamental para a organização social de Bocaina. Eles conseguiram organizar a associação e, com isso, se articularem mais para conquistarem políticas públicas que contribuam com a comunidade e, por consequência, com a conservação dessa paisagem”, conta o técnico de campo e coordenador de projetos do CTA, Ronaldo Adriano.
Além da organização política, a iniciativa trouxe o fomento e valorização à produção de alimentos das famílias beneficiadas. Em 2022, encerrando o projeto com chave de ouro, foi inaugurada uma Agroindústria em Bocaina para potencializar e qualificar o beneficiamento para a comercialização dos produtos. Esse movimento é fundamental para fixar as famílias agricultoras no campo, resgatar a autoestima e a autonomia da comunidade, melhorar a qualidade de vida e contribuir com o desenvolvimento regional que acaba por ter impactos nacionais e também globais.
O Projeto chegou ao fim com vários benefícios sociais e políticos para Bocaina, mas o PPP-ECOS seguirá junto à comunidade. Isso porque o CTA irá receber novo apoio do fundo para desenvolver mais uma iniciativa, a “Rotas da Agroecologia”, que tem o objetivo de fortalecer a rota de comercialização de produtos orgânicos da agricultura familiar no Mato Grosso. O projeto passará por 15 municípios do estado, entre eles, Vila Bela da Santíssima Trindade, onde está localizada a comunidade Bocaina. É com novas oportunidades e mais autonomia que Bocaina pode vislumbrar a resistência e a organização política alinhada à agroecologia e ao desenvolvimento justo e com conservação ambiental.
“Nós lutamos para sermos todos parceiros produzindo e se ajudando. Digo para outras pessoas que trabalham com a agricultura familiar para fazerem isso em parceria, no coletivo da sua comunidade e também de outras comunidades. Porque sozinho é custoso. A agroecologia se faz em conjunto”, conta sorrindo Chiquinho.
Foto da capa: Acervo ISPN/Méle Dornelas.
Escrito por Méle Dornelas.
Edição de vídeo por Camila Araujo.