histórias dos projetos

‘A força da gente é como raiz’: agroecologia na Caatinga

Quintais produtivos cultivados por mulheres garantem água, alimento e dignidade na convivência com semiárido 

Agricultora Catarina Maria de Conceição mora na comunidade Cacimba, localizada no Quilombo Catolé, em Serra Talhada (PE)

No semiárido pernambucano, mulheres camponesas têm transformado a realidade local por meio de práticas agroecológicas que aliam conservação ambiental ao fortalecimento econômico. Na comunidade quilombola Feijão e Posse, em Mirandiba (PE), as agricultoras agroecológicas abasteceram a cidade na pandemia, como destaca a presidente da associação de moradores, Maria Tatiane Gomes de Souza. 

Liderança Tatiane Gomes à frente da horta comunitária da comunidade quilombola Feijão e Posse, em Mirandiba (PE)

“Usando grupos de venda no celular, abastecemos a cidade no tempo da pandemia”, conta Tatiane. Ela explica que na comunidade algumas famílias mantêm quintais produtivos individuais, mas a horta comunitária une a todos. 

Ao lado de Tatiane, a agricultora Maria Bezerra reforça a importância dessa união. “A força da gente é como raiz. Tiramos [alimento] da horta comunitária para comer, vender e, se necessário, doar.”

Agricultora Maria Bezerra, moradora da comunidade Feijão e Posse, em Mirandiba (PE), com seu porco de estimação

Em Sertânia, na comunidade da agricultora  Joana Darck, as práticas agroecológicas também garantem o sustento das famílias, com a produção de alimentos diversos misturados no plantio consorciado de gergelim e algodão agroecológico.  

Presidente da Associação Agroecológica do Pajeú (ASAP), Joana explica: “A gente não está só retirando [da natureza], estamos devolvendo nutrientes. A produção agroecológica vai além das sementes, é um trabalho que abrange todas as culturas.”

Em Sertânia (PE), agricultoras da Associação Agroecológica do Pajeú (ASAP) beneficiam a colheita de gergelim

Agroecologia no semiárido 

Nas duas comunidades, projetos apoiados pelo Fundo Ecos têm fortalecido as práticas agroecológicas. Em Feijão e Posse, o foco está na finalização da cozinha comunitária, cuja construção começou em 2014, com apoio da Casa da Mulher do Nordeste (CMN). 

Por meio deste espaço, ao menos 20 famílias quilombolas são beneficiadas de forma direta, e 15 mulheres recebem formação em boas práticas de manipulação de alimentos, processamento de frutas e produção de doces. 

Já em Serra Talhada (PE), a ASAP mantém uma unidade de beneficiamento de alimentos que agrega valor à produção local, transformando alimentos in natura em produtos como tahine, pasta de amendoim e óleo de gergelim. Os itens são processados com o apoio de energia fotovoltaica instalada com recursos do Fundo Ecos. São cerca de 230 famílias de 25 comunidades  envolvidas na produção. 

De acordo com a engenheira florestal Jessica Pedreira, assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), as práticas agroecológicas não apenas conservam a paisagem da Caatinga, mas também promovem a segurança alimentar e a geração de renda. 

“São práticas de baixo impacto, que conservam o solo, a água e as sementes crioulas e tradicionais. O quintal produtivo, por exemplo, é um espaço feminino [onde a mulher passa a maior parte do tempo], essencial para a segurança alimentar. Quando associado ao extrativismo da Caatinga, permite a comercialização de excedentes, gerando mais valor aos produtos.”

Reunião da equipe do ISPN e da Casa Mulher do Nordeste com agricultoras da comunidade Feijão e Posse sobre projeto apoiado pelo Fundo Ecos

A agroecologia se diferencia do cultivo convencional por sua abordagem integrada e sustentável. Enquanto a agroecologia valoriza saberes tradicionais e a soberania alimentar, o cultivo convencional prioriza a produtividade em larga escala, utilizando agrotóxicos e insumos químicos que podem degradar o solo e o ambiente.

Uma prática fundamental para a agroecologia no semiárido é a cobertura do solo –  consiste em cobrir a superfície do solo com matéria orgânica, como folhas secas, galhos, palha e restos de frutos. A técnica protege o solo contra erosão e reduz a evaporação da água em uma região com alta incidência solar. “A cobertura protege o solo, que funciona como uma esponja, armazenando melhor a água”, explica Jessica. 

Tecnologias sociais, como as cisternas de reúso de águas cinzas, desempenham um papel central ao captar água descartada de cozinhas e banheiros para irrigar quintais produtivos. Já o armazenamento de água para consumo humano é garantido pelas chamadas cisternas de primeira água, que coletam e armazenam a água da chuva em reservatórios cobertos e protegidos.

Cisterna para armazenar água de primeiro uso garante convivência com o semiárido

Joana Darck, assentada no Assentamento Cacimbinha, em  Sertânia, acredita que a agroecologia é “o único meio de permanecer no campo”. O desafio, no entanto, não se limita à irregularidade das chuvas. Dados da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) mostram que apenas 4,2% das terras agricultáveis estão nas mãos de 1,5 milhão de famílias agricultoras, enquanto 38% pertencem a grandes latifundiários.

Jessica reforça que o contexto exige inovação. “As práticas tradicionais, baseadas na agroecologia, precisam ser aprimoradas, com ações coletivas e não apenas individuais, para enfrentar as mudanças climáticas e a limitação de recursos nos territórios.”

A quilombola Catarina Maria de Conceição, moradora da comunidade Cacimba, localizada no Quilombo Catolé, município de Serra Talhada (PE), confirma o cenário: “vivo na luta, cuidando da roça, dos bichinhos, tentando. Quem tenta, um dia chega lá.”

“Uma vez eu morei aqui e não tinha água, precisava buscar água bem longe. Um dia eu tava meio aperreada, aí eu saí daqui e disse: só vou voltar aqui quando eu tiver água. Ter a água assim fica melhor, a cisterna é boa porque pega água boa”, acrescenta. 

Catarina planta feijão, milho, algodão e palma. Para potencializar a produção, a agricultora tem sido beneficiada com a implantação de um sistema de produção de base agroecológica por meio do projeto do Centro de Educação Comunitária Rural (Cecor), selecionado pelo 35º Edital Fundo Ecos. A ideia do fomento é constituir uma feira agroecológica próxima da comunidade, para comercialização de alimentos produzidos na região.

Cisternas fortalecem quintais produtivos e hortas, garantindo água para a produção de alimentos

Com foco em famílias chefiadas por mulheres, o projeto busca melhorar a segurança alimentar e gerar renda, enfrentando também o cenário de violência contra mulheres no Sertão do Pajeú. Somente no primeiro semestre de 2024, foram registrados 1.203 casos de violência na região, quase 5% dos casos no estado de Pernambuco.

Já o projeto da ASAP tem como foco o beneficiamento  de alimentos, como gergelim, girassol e amendoim,. Para a técnica agrícola da organização Diaconia, Roseane Simões, assessora técnica da Diaconia, “o impacto é que as famílias conseguem enxergar que sua produção tem um meio de comercialização, uma comercialização justa, tanto para quem produz como para pessoas consumidoras”. 

ASAP produz tahine, pasta de amendoim e óleo de gergelim em unidade de beneficiamento

Além de fortalecer a produção agroecológica, os projetos apoiados pelo Fundo Ecos promovem formações coletivas e oficinas para transformar a produção local em produtos como geleias, doces e licores. “O Fundo contribui para o aproveitamento sustentável das produções, além de apoiar tecnologias sociais, como fogões agroecológicos, no caso dos projetos nas comunidades quilombolas, e energia solar em pequena escala, no caso do projeto da ASAP”, explica Jessica. 

Apesar dos avanços, Jessica alerta sobre os impactos das grandes usinas de energia solar, que têm causado desmatamento na Caatinga. “A energia solar só é realmente sustentável quando usada em pequena escala e de forma descentralizada.”

Os intercâmbios entre comunidades também têm sido fundamentais para compartilhar experiências e fortalecer o protagonismo feminino. No sertão do Pajeú, a agroecologia tem mostrado ser mais do que uma técnica agrícola: é um caminho para resiliência, sustentabilidade e transformação social.

Equipe do ISPN, da Casa Mulher do Nordeste e da Diaconia em visita a comunidades organizadas pela Associação Agroecológica do Pajeú

#AquiTemFundoEcos: Os projetos e organizações citadas no texto foram selecionadas no 35º edital do Fundo Ecos, com foco na Caatinga. A iniciativa conta com apoio financeiro do GEF (SGP) e apoio institucional do PNUD Brasil.

Texto e fotos por Camila Araujo, assessora de Comunicação do ISPN

 

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