É entre julho e outubro que os frutos do baruzeiro – árvore ameaçada pela exploração predatória de madeira no Cerrado – caem aos milhares no solo. Uma árvore adulta pode produzir cerca de 1.500 frutos por ano, de acordo com dados da Embrapa. E na Baixada Cuiabana, localizada no entorno da capital de Mato Grosso, comunidades quilombolas e agricultores familiares fazem a coleta desse tipo de amêndoa brasileira comestível e muito nutritiva, para depois comercializá-las. Tudo com muito cuidado e respeito à natureza.
Normely de Barros, 44 anos, coletora de baru, ou cumbaru, como é conhecido na região, conta que começou a coletar o fruto há cerca de três anos, com apoio técnico da Associação de Produtores Rurais Nossa Senhora de Lurdes, à qual ela é associada.
“Antes a gente não fazia nada com o baru. Aí o presidente da Associação explicou como era o trabalho, fez paçoquinha com a castanha e incentivou toda a comunidade”, disse a agricultora familiar, destacando que já chegou a juntar R$600,00 em uma única coleta no seu quintal.
O relato é o mesmo feito por Miguelina de Oliveira Campos, moradora da comunidade rural São Manoel do Pari, no município vizinho de Nossa Senhora do Livramento: “um fruto que a gente não usava e perdia, apesar de ser muito saudável”.
Simão de Almeida, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Nossa Senhora do Livramento, afirma que “no passado, os pais da gente sempre falavam que o cumbaru dava ferida”, mas que após tomar conhecimento, “hoje o cumbaru tem grande utilidade para as famílias e os trabalhadores rurais, e é uma fonte de renda”. Se antes o fruto se perdia no mato, atualmente ele vem sendo valorizado.
Isso demonstra que estimular as cadeias da sociobiodiversidade gera renda às comunidades. É também uma oportunidade econômica para manter a Associação ativa e produtiva, com benefícios especialmente para as mulheres.
De acordo com a Cooperativa Central da Agricultura Familiar da Baixada Cuiabana, na região de Poconé, a 105 km de Cuiabá, as mulheres correspondem a quase 70% das pessoas que coletam o baru na localidade. E até mesmo após a safra, as trabalhadoras podem ter renda, já que se bem armazenados os frutos duram até dois anos.
Com sede na comunidade Zé Alves, a cooperativa é gerenciada pela família Ponce. Junto com o sindicato, que tem sido linha de frente na articulação da cadeia produtiva do baru na região da capital mato-grossense, dialogam com os agricultores familiares do entorno e, a partir deste contato, incentivam a coleta dos frutos nos quintais de suas casas.
“Meu papel é articular a colheita do cumbaru com trabalhadores rurais e dizer a importância que tem o cumbaru, tanto o fruto como a árvore”, explica Simão.
Cada quilo coletado é vendido por R$0,50. Logo após, o baru é distribuído entre as pessoas que irão quebrá-los, para a obtenção da amêndoa. A quebra do baru é feita em uma máquina, de uso manual, que possibilita quebrar a dura casca que envolve a amêndoa. As quebradeiras da castanha de baru recebem R$13,00 pelo quilo da castanha, que será estocada e posteriormente vendida por R$32,00 para armazéns e lojas especializadas em produtos da sociobiodiversidade.
Agroextrativismo e conservação dos biomas
A coleta e beneficiamento do baru em Mato Grosso é um exemplo de agroextrativismo, atividade normalmente desenvolvida por povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares que, com suas práticas sustentáveis de uso dos recursos naturais, acabam sendo fundamentais na conservação dos biomas brasileiros. Essas práticas advêm de conhecimentos milenares que contribuem para a manutenção da cultura desses povos em seus territórios.
A engenheira florestal Terena Castro, assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), explica que o agroextrativismo ocorre aliado à observação da natureza e ao respeito do ciclo produtivo e reprodutivo das árvores. “Assim, a extração do baru pelas comunidades não compromete a reprodução da espécie, possibilitando tanto a sobrevivência das mesmas como também a continuidade da atividade econômica pela comunidade”, destaca.
O sindicalista Simão vai na mesma linha e comenta que com a valorização do baru, as árvores de baruzeiro estão sendo conservadas. “Não estão mais sendo cortadas e na verdade novas árvores estão sendo plantandas”. Além disso, ele destaca que a árvore do cumbaru não afeta as plantações nas lavouras já que tudo que é plantado embaixo dela “vinga”. Ouça a explicação no áudio abaixo:
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Terena conclui que esse processo é uma via de mão dupla: “a natureza deve se manter sadia e equilibrada para que a atividade agroextrativista continue a existir”.
Outro fator apontado pela assessora é que a atividade de coleta do baru gera engajamento comunitário, com homens, mulheres, crianças e anciões envolvidos no agroextrativismo da castanha. “Contribui para a manutenção das famílias no campo e desperta interesse da juventude pela atividade”, conclui. Por isso, defender os coletores de baru é defender o Cerrado.
Baru: nutrição e usos variados
A semente do baru tem se consagrado no gosto popular e no mercado pelo seu sabor suave e alto valor nutritivo. A Embrapa aponta que tanto a polpa quanto a semente são ricas em calorias e sais minerais e que em diversas receitas funciona como substituta do amendoim, castanha de caju ou nozes.
É possível consumi-la de diversas formas: torrada, triturada em meio a doces como bombons, paçoquinha e rapadura. Para a indústria de cosméticos, há também a possibilidade de extração do óleo da semente.
Na comunidade Zé Alves, onde fica a sede da Associação de Produtores Rurais Nossa Senhora de Lurdes, a família Ponce, que já tem tradição na produção da rapadura, agora produz “rapadurinhas” com castanha de baru triturada no meio, uma forma de ampliar a oferta sem deixar de lado a tradição do doce à base de cana de açúcar.
Terena Castro, do ISPN, lembra ainda que os resíduos gerados a partir da quebra do fruto podem ser utilizados para diversos fins, desde alimentação para gado, insumos para jardinagem, artesanato e até como carvão vegetal.
Consumo e demanda
Com a expectativa de aumento do consumo do fruto beneficiado, comunidades, pesquisadores e organizações da sociedade civil preocupam-se com a segurança de todos os elos da cadeia produtiva. A coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras e presidente do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, Cláudia de Pinho, destaca a necessidade de estruturação da cadeia produtiva do baru, para que haja respeito à natureza e aos trabalhadores e trabalhadoras.
“Até o momento as atividades de coleta e quebra do baru têm gerado impactos positivos no território, sobretudo para as mulheres. Mas é preciso que haja cuidado na estruturação desta cadeia e com as comunidades que convivem com o fruto. Aaté chegar no processo do consumo, outras etapas se desenrolam no chão do Cerrado”, afirma.
O consumo dos produtos da sociobiodiversidade também pode ser impulsionado por políticas públicas. Um dos públicos-alvos pretendido para a venda das “rapadurinhas” são os estudantes das escolas públicas municipais, a partir da venda para o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Além de ser um produto que as crianças gostam, tem seu valor nutricional aumentado com o acréscimo do baru.
Fortalecer a cadeia produtiva
A Associação de Produtores Rurais Nossa Senhora de Lurdes e a Cooperativa Central da Agricultura Familiar da Baixada Cuiabana são organizações beneficiárias do Fundo PPP-ECOS por meio de um edital, lançado em 2021, de ajuda emergencial no contexto da pandemia de Covid-19.
Os dois projetos preveem ações para fortalecer a cadeia produtiva do baru, desde a coleta até a comercialização. Até o momento, uma oficina sobre boas práticas da coleta do fruto e quebra para obtenção da amêndoa, bem como sobre opções para comercialização, foi realizada e contou com a presença de cerca de 30 lideranças das comunidades tradicionais da região.
O Fundo também viabilizou a aquisição de dez máquinas para o corte manual do fruto e para realizar a extração da amêndoa. Com o recurso também já foi possível comprar equipamentos para complementar a cozinha comunitária e beneficiar a amêndoa, tais como torrador, liquidificador, formas para confecção das rapaduras, embalagens, rótulos e uma máquina seladora. O próximo passo será a inserção dos produtos no mercado local e institucional.
Sobre o PPP-ECOS
O PPP-ECOS é uma estratégia do ISPN para promover Paisagens Produtivas Ecossociais, por meio de quatro pilares: acesso a recursos, articulação política, protagonismo comunitário e gestão do conhecimento.
A iniciativa já apoiou mais de 890 projetos no Cerrado, na Caatinga e na Amazônia.
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Quer saber mais sobre o baru e outras espécies do Cerrado e da Caatinga? Acesse o Cerratinga.