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Conhecimento tradicional sobre plantas medicinais resiste na juventude kalunga

Foto: Fernando Tatagiba

Pesquisa apoiada pelo ISPN reuniu jovens e anciãos da comunidade do Engenho II, em Cavalcante (GO) e resultou em livro inédito

Dona Luzia Francisco Conceição diz que não há nada melhor que assa-peixe para limpar o pulmão e tratar pneumonia, e dona Elias José Fernandes concorda: “é tão bom para o pulmão que corrói tudo que tiver podre por dentro”. Para José dos Santos Rosa, o seu Zé Preto, chá só é chá se for feito com essa planta do Cerrado.

Getúlia Moreira da Silva, por sua vez, ensina receita. Ela pega um ramo da folha e bota para ferver junto com leite de gergelim torrado. “Bom para tosse e para expectorar.” Cada parte da planta tem uma utilidade. Desde a folha até a raiz.

O mesmo vale para o buriti, o jatobá, a sucupira branca… Do buriti, por exemplo, é possível extrair um óleo que é bom para dores, como ensina seu Alvino Cesário de Torres. A raiz da palmeira na garrafada é boa para curar doenças infecciosas do corpo. Já a seiva, extraída na lua cheia, é boa para colesterol, nervo inflamado e anemia.

No território Kalunga Engenho II, os anciãos transmitem conhecimentos sobre plantas medicinais para a juventude (Foto: Acervo ISPN/Fernando Tatagiba)

Transmitido por Luzia, Elias, Zé Preto, Getúlia, Alvino e outros 11 raizeiros do território Kalunga, a partir de entrevistas feitas por jovens da comunidade, esse conhecimento compõe a Farmacopeia Kalunga. Ele foi sistematizado no livro “As Plantas Medicinais dos Kalunga”, desenvolvido pelo projeto “Saberes e fazeres ancestrais do povo Kalunga sobre plantas medicinais nativas e cultivadas da Associação Kalunga Comunitária do Engenho II”.

O projeto foi selecionado por um edital TICCAS, com apoio do fundo para a Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), financiamento do Ministério do Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear (BMU) e parceria do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

O livro foi lançado na comunidade quilombola Engenho II, do território Kalunga no município de Cavalcante, em Goiás, no dia 24 de junho, e é o primeiro registro oficial desse conhecimento.

Lançamento do livro “As Plantas Medicinais dos Kalunga” (Foto: Acervo ISPN/Fernando Tatagiba)

Os autores e as autoras receberam uma quantidade deste material que poderá ser vendido para gerar renda e retorno financeiro aos envolvidos. Também irá disseminar os conhecimentos sistematizados para fora da comunidade.

Para Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga, do ISPN, o destaque do projeto é “quanto uma atividade simples, como foi a entrevista dos jovens com anciãos, tem um grande poder de valorizar a cultura local e tradicional”.

A coordenadora afirma ainda que se trata de “um trabalho que fortalece o território e promove a continuidade dos modos de vida ali dentro”.

Comunidade se reuniu no dia 24 de junho para o lançamento do livro (Foto: Acervo ISPN/Fernando Tatagiba)

Etnobotânica

Para conservar o saber tradicional de anciãos e anciãs Kalunga, o projeto trouxe a juventude para o centro da pesquisa: 13 jovens se debruçaram sobre a etnobotânica, uma parte da ciência que estuda a relação dos seres humanos com as plantas. A pesquisa foi participativa e contou com a coordenação da doutora em botânica Renata Corrêa Martins, tanto nos encontros comunitários quanto na organização do livro.

“Os resultados da pesquisa foram obtidos a partir dos trabalhos de campo, da identificação botânica e da assembleia participativa”, explicou Renata, acrescentando que a organização do livro permitiu fortalecer o “diálogo entre os saberes”, entrelaçando os princípios da pesquisa, da valorização cultural e dos saberes ancestrais.

Nas saídas de campo, 409 coletas de plantas foram realizadas com a identificação de mais de 200 espécies – a maioria do Cerrado. Ao fim do projeto, o saber tradicional de 22 delas foi sistematizado no livro, a partir da partilha do conhecimento de 19 raizeiros e raizeiras – os detentores do conhecimento tradicional sobre plantas no território.

Para Jean dos Santos, 17 anos, um dos pesquisadores do projeto, aprender sobre as plantas é necessário para manter a tradição Kalunga viva. “Sei que precisamos valorizar nossas histórias, nossas raízes, então esse é um aprendizado muito importante”, declarou o morador da comunidade Kalunga Engenho II.

“Não quero ter esse conhecimento como um hobbie, mas como algo que faz parte de mim”, explicou o jovem, acrescentando que ser chamado de raizeiro é motivo de orgulho.

Aos 14 anos, a pesquisadora Hellen Sofia Ponciano afirma que o que mais chamou sua atenção ao longo da execução do projeto foi a conversa com os anciãos. “Nunca tinha parado para pensar que eu poderia conversar com eles.”

Ela diz que tem vontade de permanecer na comunidade e contribuir na conservação do conhecimento, “para não deixar ele morrer”.

13 jovens Kalunga participaram das pesquisas para o livro (Foto: Acervo ISPN/Reprodução)

O projeto também contribuiu com a realização de diversas oficinas para o fortalecimento da comunidade, como noções de fotografia e aprofundamento sobre o conceito de TICCAs, que significa Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais, envolvendo a participação de 11 facilitadores.

Território Kalunga

O território foi reconhecido pela ONU em fevereiro de 2021 como o primeiro TICCA do Brasil – esse título é atribuído a territórios comunitários e tradicionais conservados nos quais a comunidade tem profunda conexão com o lugar que habita.

Kalunga é o maior sítio histórico e cultural quilombola do país em extensão territorial: são mais de 230 mil hectares de Cerrado protegidos nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás.

Cerca de quatro mil pessoas moram em aproximadamente 30 comunidades no local, que foi reconhecido pelo governo de Goiás em 1991 como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.

Serviço

Para comprar o livro, basta entrar em contato com a associação Associação Kalunga Comunitária do Engenho II por e-mail: [email protected] ou pelo telefone +55 (62) 98198670.

É possível ainda fazer a compra diretamente no território. Aproveite para visitar as diversas belezas naturais da região: a cachoeira de Santa Bárbara, por exemplo, tem águas azuis cristalinas e é uma das principais atrações da Chapada dos Veadeiros.

Mas atenção, você precisa agendar a visita antes, já que o número de turistas por dia é limitado. Clique aqui para mais informações.

Livro pode ser comprado diretamente na comunidade do Engenho II (Foto: Acervo ISPN/Fernando Tatagiba)

O PPP-ECOS é a estratégia do ISPN para Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais, que apoia e fortalece iniciativas junto a povos e comunidades tradicionais e de agricultura familiar desde 1994. Nesse projeto, o PPP-ECOS recebe apoio do governo alemão por meio do BMU, do Small Grants Programme do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) .

*A foto da capa, assim como todas as imagens da matéria, foi gentilmente cedida ao Acervo ISPN por Fernando Tatagiba. Texto por Camila Araujo/Assessora de Comunicação do ISPN.

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