histórias dos projetos

Cururu, siriri e furrundu: a vida em uma comunidade tradicional no interior de Mato Grosso

Em São Manoel do Pari, na Baixada Cuiabana, as famílias se juntam em um espaço comunitário para cantar, dançar, comer e trabalhar

Miguelina de Oliveira Campos, agricultora e moradora da comunidade São Manoel do Pari

“Nosso sonho sempre foi trabalhar em coletivo”, declarou Miguelina de Oliveira Campos, moradora da comunidade São Manoel do Pari, sobre o trabalho da Associação de São Manoel do Pari.

Uma das fundadoras da entidade associativa, ela conta que o objetivo sempre foi “ajudar as famílias” que moram ali, na zona rural de Nossa Senhora do Livramento, uma comunidade tradicional de agricultores familiares no seio do Cerrado matogrossense e próximo da entrada do Pantanal.

Maria Lina é agente comunitária do território tradicional (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

Fundada em 1998, a associação serviria para viabilizar a captação de recursos para os projetos da comunidade. Nas palavras de Maria Lina, agente comunitária de saúde e moradora da comunidade, a intenção era “buscar projetos para ajudar as famílias”. Devido à sua profissão, a agente de saúde conta que sempre visita a casa das pessoas que moram ali e identifica quando elas precisam de ajuda. “Sozinha a gente não consegue ajudar, mas por conta da associação, é possível”, argumenta, acrescentando que na comunidade “é um ajudando o outro”.

O primeiro passo para concretizar aquele sonho era a construção de uma cozinha comunitária para o beneficiamento da cana-de-açúcar e produção coletiva de rapadura – um alimento tradicional na região e que pertence a gerações de famílias.

Com o tempo, o sonho foi tomando novas proporções e hoje, com o apoio do Fundo PPP-ECOS executado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a comunidade conta com o espaço, que funciona com os mesmos padrões de uma pequena agroindústria.

No local, é possível produzir não somente a rapadura, como também o furrundu – um doce típico da região da Baixada Cuiabana e do Pantanal que ali é feito com polpa de mamão verde misturado no melado de cana – e o chips de banana verde, além de ser possível fazer o processamento de frutas para a produção de polpas.

Veja o passo-a-passo da feitura do furrundu: 

A base do furrundu é a polpa do mamão verde
Depois de colocado na água, essa polpa é triturada e segue para a coagem
É preciso coar para eliminar todo o líquido e ficar apenas a polpa
Aqui é uma imagem da polpa pronta para ser misturada no melado de cana
A polpa é misturada no melado de cana que está no tacho com fogo aceso
Por fim, o doce cristalizado. Depois de refrigerado, ele está pronto para ser consumido

“Com a agroindústria, nosso trabalho vai melhorar bastante, a gente vai poder ter o registro da vigilância e atender o mercado”, destaca Miguelina, acrescentando que a comunidade também poderá beneficiar o cumbaru, “um fruto que a gente não usava e perdia, apesar de ser muito saudável”.

Outros frutos do Cerrado também são aproveitados e parte da alimentação da comunidade é produzida ali mesmo, nos roçados. Um dos agricultores familiares é Nilo Manoel da Costa, que se autodefine como um “lavrador” e “lutador” pela vida. Nascido e criado no Pari, ele explica que planta “de tudo”, como banana, cana, mandioca, milho, cará, arroz e feijão.

“O povo fala que eu não preciso mais trabalhar da forma que trabalho, por conta da minha idade e por já ter os filhos criados… mas o meu dom é trabalhar”, conta sobre o manejo da roça.

Nilo é também um dos responsáveis por manter a cultura do cururu viva. Entusiasta dessa música regional típica do Centro-Oeste, ele afirma que seus pais, tios e avós tinham no cururu uma tradição e que vem a resgatando “para não acabar”, já que, acrescenta, “é uma coisa sadia”.

Seu Lino ao lado de sua companheira, dona Helena (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

De acordo com a Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer do estado do Mato Grosso, o cururu é uma das “mais expressivas manifestações culturais de Mato Grosso”, sendo apresentado em festas religiosas ou não.

Trata-se de uma roda musical com dança em que dois cantores homens tocam viola de cocho e ganzá – um instrumento musical de percussão – e se desafiam na cantoria. Veja no vídeo abaixo.

Já o siriri é também uma expressão artística tradicional que consiste em uma dança de pares, envolvendo mulheres, homens e crianças. A coreografia consiste em uma movimentação em círculo, em que os dançarinos batem as mãos entre si.

Em São Manoel do Pari, o costume é as mulheres dançarem com saias rodadas feitas de chita enquanto os homens se desafiam no canto e na viola. “Quando a gente tá junto, a gente comemora, reza, faz festa e se alegra”, explica Maria Lina.

Para Nilo, “é uma alegria”.

“Eu quero viver a agroecologia”

Vestindo uma camisa com a frase “Multiplicadores e multiplicadoras da agroecologia”, Miguelina argumenta que, apesar de “agroecologia” ser uma “palavra muito bonita” e nova, é uma prática antiga da comunidade tradicional, só que antes não levava esse nome.

“A gente sempre trabalhou respeitando a natureza, não degradando e nem usando veneno”, argumenta, acrescentando que, apesar disso, “o povo foi convencido a usar agrotóxicos”.

Com a apropriação do conhecimento agroecológico, “a gente entendeu que essas substâncias fazem mal, matam a terra, matam a planta e matam o agricultor também”, declara.

Visita de monitoramento da equipe técnica do ISPN à comunidade (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

Ela acrescenta ainda que  é possível produzir “remédios” naturais para as plantas, respeitando a natureza e deixando de lado o veneno, como fazem no Pari.

“Para mim essa prática é muito boa. Eu quero viver a agroecologia! Se eu respeitar meu irmão e minha irmã, já é bom demais”, conclui. Ao falar sobre isso, Miguelina explica que na associação as mulheres têm um papel importante e “os homens também são parceiros”.

Miguelina ao lado de seu companheiro Valdomiro (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

“Quando iniciamos lá atrás, os homens eram presidentes da associação e a gente não tinha essa voz”, diz a comunitária, acrescentando que a decisão atualmente é sempre tomada por homens e mulheres.

Chuva, geada e fogo 

A comunidade de São Manoel do Pari é beneficiária do Fundo PPP-ECOS por meio de um edital de ajuda emergencial no contexto da pandemia de Covid-19 do Projeto Cerrado Resiliente (CERES),  executado pelo ISPN, por meio do Fundo PPP-ECOS, em parceria com o WWF-Brasil, WWF-Holanda e WWF-Paraguai, com recurso da União Europeia.. Em 2021, a comunidade sofreu com um período chuvoso com ventos fortes atípicos que derrubaram boa parte das bananeiras.

As roças também sofreram os danos causados por uma geada, além de um incêndio, já que o território foi um dos atingidos pelo fogo que queimou ao menos 260 mil hectares do Pantanal.

O projeto contemplado pelo Fundo auxiliou a comunidade na compra de cestas básicas para todos os moradores da comunidade por conta da situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar em que as famílias se encontravam.

Foi possível também adquirir o material necessário para cercar a agroindústria, uma demanda apontada pela inspeção sanitária do município para que a associação possa comercializar seus produtos dentro das normas exigidas.

O Fundo também proporcionou a aquisição de uma parte dos materiais necessários para finalizar a construção da agroindústria, tais como portas para o banheiro e vestiário, bem como o forno a lenha, além de proporcionar a aquisição de freezer, tacho, panelas, talheres, rótulos e embalagens.

A inauguração da agroindústria foi no dia 11 de junho, data em que também houve a entrega do selo do Serviço de Inspeção Municipal (SIM), o que representa uma grande conquista para a associação, uma vez que é a primeira organização do município a ter o SIM.

PPP-ECOS 

O PPP-ECOS é uma estratégia de apoio a projetos para a promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais. O objetivo é democratizar o acesso a recursos para associações sem fins lucrativos e cooperativas que tenham caráter não governamental ou sejam de base comunitária para a implementação de ações que gerem benefícios socioambientais.

A iniciativa já apoiou mais de 890 projetos no Cerrado, na Caatinga e na Amazônia.

*Foto da capa e texto da matéria por Camila Araujo/Assessora de Comunicação ISPN.

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